Guepardo de Estimação

Lark

05 de fevereiro, 2025

Se você ainda não me escutou tagarelar incessantemente sobre Twenty One Pilots, este erro será corrigido agora mesmo. Há algumas semanas fui no show deles (e aliás, o primeiro show da minha vida) e claro que ainda não superei.

JORNALZINHO DA LARK EDIÇÃO #06 • FEV2024

 

 

Guepardo de Estimação

 

Se você ainda não me escutou tagarelar incessantemente sobre Twenty One Pilots, este erro será corrigido agora mesmo. Há algumas semanas fui no show deles (e aliás, o primeiro show da minha vida) e claro que ainda não superei. Se tivesse espaço suficiente, eu desfiaria os 180 slides que eu tenho explicando porque eles são tão incríveis, mas vou me conter e focar em só uma coisa.

 

Tyler Joseph e Josh Dun em Curitiba - acervo pessoal 💁🏻‍♀️💫

 

Primeiro, uma breve introdução. Essa banda é formada por 2 carinhas: Tyler (compositor, vocalista, baixista, pianista, ukulelista e pandeirista) e Josh (baterista gato). Ao longo de pelo menos os últimos 4 álbuns (possivelmente até mais), ou seja, há uns 10 anos, eles vêm criando uma narrativa sutilmente bordada nas entrelinhas das suas músicas e aparições públicas. Essa narrativa definitivamente exige os meus 180 slides de explicação, mas mesmo quem conhece a banda só na superfície pode reparar que as letras falam muito sobre as dores e pressões da vida adulta, e especialmente sobre processo criativo, e esse é um dos motivos que as músicas batem em mim com tanta força.

 

E um dos aspectos que foram genialmente representados nesse sentido foi o da pressão para criar rápido. Na letra de Migraine, numa sucessão um tanto caótica de pensamentos, ele diz (tradução livre):

 

Eu não tenho bloqueio criativo

É só que meu criativo odeia o relógio

Ele não me deixa dormir,

Acho que eu vou dormir quando estiver morto

E às vezes a morte parece melhor

Que essa enxaqueca na minha cabeça

 

Quantas crises de falta de tempo e insônia gerada por ansiedade com prazos já não foram confundidas com bloqueios criativos? Importante identificar e separar essas coisas aí. Porque quem cria muitas vezes se cobra pra criar dentro de um período específico de tempo, e não é assim que a criatividade, essa mosquinha travessa, funciona.

 

Mas, nós estamos num mundo onde prazos existem e nossos relógios não param. Eu acho que essa sensação de que antes o tempo passava mais devagar não é só uma sensação. Nós temos uma quantidade muito maior de informações, estímulos e decisões enfiadas dentro dos nossos espaços de tempo do que antes. Pra conseguir processar tudo isso, nossa velocidade de consumo aumenta. Com a velocidade de consumo do mundo aumentando, a demanda por mais informações, estímulos e conteúdos aumenta também, numa espiral escatológica de produção e consumo. Não à toa, tudo que existe em redes sociais virou “conteúdo": um enchimento indistinto socado em linhas do tempo que precisam ser constantemente reabastecidas, seja com o que for.

 

Difícil escapar disso. A gente acaba se adaptando pra atender as expectativas desse mundo corrido. E aqui entra a ambígua letra de Pet Cheetah. O eu lírico começa falando sobre horas e horas trabalhadas e não ter conseguido produzir uma única linha, e como a pressão começa a invadir sua mente, e então desabafa:

 

Não, eu me movo devagar

Eu quero parar o tempo

Eu vou sentar aqui até achar o problema

 

Mas logo no verso seguinte,

 

Eu tenho um guepardo de estimação no meu porão

Eu criei, dei banho e chamei ele de Jason Statham

Eu o treinei pra fazer essas músicas pra mim

E agora meu guepardo de estimação

É mais rápido no studio do que na corrida

 

Vou despejar um pouco de interpretação pessoal aqui. Esse “guepardo de estimação” chamado Jason Statham (que pode ser só um nome de brincadeirinha, ou pode ser uma referência a Velozes e Furiosos, o que pra mim faz todo sentido), ou seja, o bicho terrestre mais rápido do mundo foi domesticado pelo eu lírico para escrever músicas. Como obviamente é o próprio Tyler quem escreve as músicas, esse guepardo só pode ser ele mesmo. É como se ele tivesse treinado o próprio corpo e cérebro, ou desenvolvido uma espécie de mecanismo ou estratégia para conseguir produzir músicas rápido, muito rápido, no ritmo que é exigido dele.

 

Eu escuto essas músicas e fico refletindo sobre a questão do tempo pra mim. Sobre como inevitavelmente eu me encontro nesse redemoinho de velocidade. Como toda vez que me perguntam “como você tá?", eu respondo "na correria haha". E estar permanentemente nesse estado de correria é muito desgastante. Mas se o mundo inteiro está operando nesse ritmo, você vai fazer o que?

 

Eu ainda não achei a solução pra mim mesma. Eu acredito que as melhores soluções sempre devem acontecer a nível coletivo (vamos fazer um pacto pra todo mundo diminuir o ritmo e fazer tudo mais devagar?), mas elas sempre exigem primeiro uma resolução individual. Eu dei o primeiro passo de identificar a velocidade absurda com que a minha vida está correndo. Dei até alguns passos a mais, cancelei alguns projetos pra não me sobrecarregar e comecei a acordar bem mais cedo (afinal, eu vou dormir quando eu estiver morta), para poder fazer as coisas com mais calma de manhã.

 

Eu coloquei um relógio na minha mesa de trabalho, um analógico, porque números se transformando em outros números no formato digital não me dizem muita coisa, mas ver o espaço que os ponteiros têm pra percorrer entre um número e outro me dá uma noção melhor de como o tempo passa. Eu estou aprendendo o que cabe e não cabe nesses espacinhos, e agora “meu criativo” odeia um pouco menos o relógio.

E eu cuido de plantas, porque plantas não estão nem aí pra minha pressa, elas crescem no próprio tempo e isso me ajuda a ter mais paciência.

 

É uma linda reflexão sobre parar o tempo e se mover devagar, esta que eu estou fazendo, ao mesmo tempo em que eu abri o bloco de texto e me obriguei a escrever essa newsletter agora porque ela tem que ser disparada amanhã (hoje, pra vocês); ao mesmo tempo em que o quadro com o meu cronograma apertadíssimo de produção me assombra pelas costas, porque eu tenho que lançar uma HQ nova até setembro. 🤡

 

O mundo corre e a gente que está no mundo meio que tem que acompanhar a corrida da coisa. Eu posso até parar, mas minhas contas não param. Pois é, correr faz parte, eu sei que dias mais calmos virão, nesse momento eu preciso tocar o barco no ritmo mais acelerado que eu puder. Então, tudo bem meus prazos estarem me assombrando e o tempo parecer ser tão curto, porque eu vou dar um jeito, eu sempre dou. Eu criei meu próprio "guepardo de estimação” pra isso.

 

 

 

E V E N T O S

 

Circuito Amazônico de Quadrinhos

 

 

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C O M O   E S C R E V E R   U M A   H Q

 

Falas

 

Vários artistas experientes dizem, em relação a desenho de observação, que se você só observar e tentar reproduzir o trabalho de outros artistas, você vai acabar reproduzindo também os vícios e estilos pessoais deles. Pra evitar isso, você precisa praticar o desenho de observação com pessoas ou fotografias, ou coisas reais do mundo real.

 

Eu me baseio no mesmo princípio para escrever minhas falas. Eu não posso usar apenas as falas de outros personagens como referências, porque alguma coisa da honestidade da comunicação sempre vai acabar se perdendo nessa cópia da cópia da cópia.

 

As falas são muito importantes, porque elas transmitem muito da personalidade dos personagens para o leitor; mas não é só isso. Falas bem escritas convencem. Um boneco muito bem desenhado, anatomicamente e gramaticalmente correto não vai convencer tanto o leitor quanto um dinossauro falante que, sabe? fale do jeito que as pessoas falam (com o devido respeito às HQs de hominho das antigas).

 

Peter Parker e Gwen Stacy de Stan Lee

Dinossauros falantes do Silva João

 

Falas mal escritas quebram o “encantamento” de uma história. Sabe quando alguma coisa muito absurda/específica acontece em um sonho e você percebe que está sonhando? O mesmo acontece com histórias. Eu não estou falando de ficção. Mesmo que alienígenas não sejam reais, os sentimentos de quem está lutando contra alienígenas é real, e a gente se identifica. Então a gente engole o papo de alienígena, mas a gente não engole um sentimento falso. Sentimentos estão na base da nossa comunicação, e por isso é tão importante transmitir isso decentemente nas falas.

 

Um erudito precisa soar como um erudito. Um velho precisa soar como um velho. Uma pessoa que tem pavio curto tem que soar como uma pessoa que tem pavio curto.

 

 

Por isso, quando eu estou escrevendo falas - o que ocorre em parte no roteiro, e é refinado com o esboço - eu me esforço ao máximo para “escutar” meus personagens, reproduzindo os diálogos deles na minha cabeça, e também dando liberdade para eles soarem como eles mesmos (ainda que isso exija que eu mude partes da história). Eles precisam falar como pessoas normalmente falariam.

 

E para saber como as pessoas normalmente falam… é preciso falar com pessoas. O que é um golpe para o artista introvertido, mas uma parte essencial do trabalho. Sair, ver gente, falar com gente, escutar mais do que falar. Em resumo: colher referências da vida.

 

 

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