Lark
06 de maio, 2025
Fazer arte é um negócio muito terapêutico. Não quero dizer terapêutico no sentido calmo e confortável de fazer uma atividade manual ouvindo o som da chuva, e o sentimento de calma e paz que isso traz. Quero dizer aquela terapia mais desgraçada que entra lá dentro do seu cérebro e arranca pra fora as coisas que você precisa tratar.
JORNALZINHO DA LARK | EDIÇÃO #09 • MAI2024 |
Fazer arte é um negócio muito terapêutico. Não quero dizer terapêutico no sentido calmo e confortável de fazer uma atividade manual ouvindo o som da chuva, e o sentimento de calma e paz que isso traz. Quero dizer aquela terapia mais desgraçada que entra lá dentro do seu cérebro e arranca pra fora as coisas que você precisa tratar.
Não sei se pra todo mundo é assim. Para todos os efeitos, estou novamente falando só da minha experiência pessoal.
Eu sou uma pesoa que sente muita raiva. Aquela raiva que até tem motivo, mas se torna irracional na medida que não pode ser canalizada para nada de útil, e ainda me faz mal. É uma falha de caráter, me incomoda, mas eu não posso evitar, e tem assuntos específicos que me deixam especialmente com muita raiva. É quando surgem esses assuntos que o fantasminha dentro da minha cabeça fica discutindo sem parar, e quando eu não consigo detê-lo, eu acabo alimentando treta com estranhos na internet, ou mesmo brigando ao vivo com pessoas. Eu tento me conter, mas é difícil. Cada um tem seus probleminhas, e a raiva é o meu.
E (talvez isso devia ser óbvio, mas eu só reparei recentemente) o Martín, o protagonista do Muda de Chá, está sempre pistola. Tipo, eu já desenhei ele pistola mais de 90 vezes, e eu não finalizei nem metade das páginas ainda. O Martín está irado numa média de 30% do tempo todo. O que devia ser óbvio é que eu me espelhei nele quando estava criando a história, mas eu só percebi esse detalhe depois.
Talvez o grande problema do Martín é que ele está com ódio o tempo todo, e ele não sabe o que fazer com isso. E sabe, a parte díficil de você criar uma história onde o personagem tem o mesmo problema que você é que você precisa resolver o problema dele, mesmo que você não saiba qual é a solução para si mesmo.
E aí é que entra aquele processo de terapia. De alguma forma, é um pouco mais fácil lidar com o problema do personagem porque ele não é você (mesmo que ele tenha saído de você). É quase como lidar com o problema de um amigo, só que nesse caso você tem carta branca pra dizer o que você quiser pra ele, sem soar como um “ok, mas você já tentou não ter esse problema?". Então você tá mexendo no problema do personagem, e no fundo, tá mexendo no seu próprio. Claro que para a história soar genuína, você vai ter que remexer na sua própria ferida e entender o que é que está bem no centro dela. E você se força a fazer isso para poder terminar a história — ou abandona o projeto. Eu mesma já fiz isso com vários.
Mas, eu estou conseguindo terminar esse. Uma parte da minha raiva foi embora junto com a raiva do Martín. Foi desconfortável, e doeu, mas ao mesmo tempo dá um alívio, e se não resolvi totalmente o meu problema ainda, ter feito essa HQ me lembra de pelo menos direcionar melhor minha atenção. E de sair da internet de vez em quando.
Seres humanos são complexos. Eles têm alguns sentimentos bons, e muitos sentimentos ruins, desconfortáveis, violentos e confusos — o que é estranho, e também bonito. E ainda bem, sabe? Como é que dá pra fazer arte sem isso?
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C O M O E S C R E V E R U M A H Q
Em vários momentos da produção de uma HQ, eu preciso pedir por opiniões externas. Porque eu não tenho como saber se um desenho ou uma fala está realmente transmitindo algo que eu pensei, e se a história de forma geral está compreensível. Eu não tenho como avaliar isso sozinha, porque eu pensei na história, eu tenho todas as peças e eu sei o que cada coisa quer dizer, ou melhor, o que eu quero que cada coisa queira dizer. Mas o leitor vai começar uma história nova do zero, sem nenhuma informação preliminar. Por isso é preciso fazer leituras-teste antes.
E em que momento? Não sei se existe uma regra pra isso. Eu tenho pessoas diferentes para momentos diferentes. Para algumas eu contei desde a ideia inicial, antes de ter escrito qualquer coisa. Outras leram o roteiro, outras (a maioria) leram os esboços. Embora a que leu o roteiro possa ler os esboços, a opinião dela não vai contar tanto quanto alguém que leu só o esboço, porque quem leu o roteiro já sabe o ponto e o desfecho da história toda, e a que não leu nada está com um olhar limpo de qualquer juízo sobre a história.
Eu gosto de ter leitores de diferentes tipos: pessoas que fazem quadrinhos, pessoas que lêem quadrinhos e pessoas que lêem outros tipos de livros. Eu preciso que a história seja compreensível ou instigante para todos esses tipos de públicos. E eu também peço feedbacks direcionados para cada um, e geralmente gira em torno de: entendeu o fluxo dos acontecimentos? O que achou de tal e tal personagem? Teve alguma parte muito chata? Qual sua parte/personagem preferidos?
Bem, essa é a parte fácil. Depois vem a parte desafiadora que é: receber e filtrar os feedbacks.
Porque os feedbacks não vão todos vir dizendo “uau! está lindo e perfeito, eu amei tudo!” (se vierem todos assim, o mais provável é que seus amigos não estejam sendo muito sinceros). E embora algumas respostas sejam bem claras e diretas (exemplo: “tal parte está com o ritmo muito lento”, ou “nestes quadros específicos parece que é o personagem X falando quando deveria ser o Y”), outras respostas vão ser subjetivas e vagas (por exemplo: “não entendi”, “não gostei”).
E a verdade é que a maioria das pessoas que não trabalham com quadrinhos não vão saber dar esse tipo de feedback mais direto e objetivo. E nem é obrigação delas saber, na verdade. É minha tarefa interpretar o que elas pensaram e sentiram, e tentar trazer alterações coerentes para a minha história. Nesse sentido, ter respostas de várias pessoas ajuda, porque eu posso focar nos pontos em que a maioria delas concordou, e até ignorar o que incomodou só uma pessoa.
Mas vou falar a verdade: não é mole dar o seu trabalho para as pessoas lerem e julgarem. Eu recebi um ou outro feedback que me desanimaram muito ou até me deram vontade de desistir da história. Mas eu tambem recebi alguns feedbacks que me ajudaram muito, me trouxeram novas perspectivas e ideias, e me deram até mais gás pra continuar fazendo.
E de certa forma, esse exercício é como um treino pra quando eu for compartilhar minha HQ com o mundo. Vai ter gente que não vai gostar mesmo, tudo bem. Mas vai ter gente que vai amar. É preciso saber lidar com essas coisas, e saber colocar cada sentimento (o das outras pessoas e o meu próprio) nos lugares certos.
Até a próxima!
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